Oliveira Vianna enxerga o problema do Brasil na ausência de liberdade civil, e não na ausência de liberdade política. Neste ponto ele critica os liberais, por serem homens de doutrina, posto darem extrema importância ao problema da liberdade política quando deveriam colocar em primeiro plano a liberdade civil. E, como homens de ação, também se equivocam por procurarem
através de Constituições, lutas, sistemas eleitorais, revoluções, dar realidade à liberdade política, num país, cujos cidadãos, principalmente os das classes populares, não conseguiram ainda assegurar a sua liberdade civil (Vianna, s/d, p. 88).
Para ele, então, o governo do “bom tirano”, como diz, exemplifica a possibilidade de existir “um regime de perfeita liberdade civil sem que o povo tenha a menor parcela de liberdade política” (VIANNA, s/d, p. 88). Eis o grande equívoco, para ele, dos nossos liberais: supor que poderia existir um regime de liberdade política sem dantes estar garantida a liberdade civil. Devido a nossa formação histórica, que não formou verdadeiros cidadãos – para ele, o homem público à maneira inglesa – “com sua consciência cívica, a sua independência política, a sua combatividade eleitoral, a sua confiança no direito e na lei”, faz-se então imprescindível a organização da justiça “como um dos meios de dar realidade à nossa democracia de letra e forma” (VIANNA, s/d, p. 89). No Brasil, para o autor, não termos nem liberdade civil nem liberdade política, se daria pelo fato de nunca termos tido uma eficiente organização da justiça.
No tocante a organização da justiça, para Vianna, ela não poderia passar pela organização partidária, isto é, um determinado partido que levante a bandeira da Justiça, suporia a existência de seu antagônico, ou seja, um que arvorasse a bandeira da Injustiça – coisa esta inaceitável. É claro, para ele, que todos se colocam a favor da Justiça e não há quem, confessadamente, se coloque de lado oposto a ela. Ele diz:
O desejo de justiça é uma aspiração que está no fundo da alma de todo homem – e não pode servir para mote de ação política, para lema de bandeira partidária, para descrime de grupos que militem no campo da vida pública (Vianna, s/d, p. 90)
De acordo com ele, o ideal de Justiça se trata de um alvo a que se pretende alcançar, como todo ideal, o “essencial está, portanto, em determinar o plano itinerário mais apto para irmos até lá” (VIANNA, s/d, p. 90). A Justiça, enquanto princípio, para Vianna, está como palavra de ordem presente em todos os campos, do “campo democrático, bradam-nos apenas: Justiça! Mas este também o grito dos outros grupos […]” (VIANNA s/d, p. 90). Em suma, é um ideal comum. O problema está, para ele, no seguinte:
Os que estão agitando a bandeira de Justiça traduzem apenas, numa palavra-lema, uma aspiração geral, que não é de um grupo, mas de todos os grupos, da Nação na sua totalidade. Estão fazendo obra meritória, talvez, de agitação, de protesto, de reação; nunca, porém, obra de edificadores políticos e de organizadores de partidos – obra de reforma, de construção, de organização, como se faz mister. (Vianna, s/d, p. 91)
É evidente para o autor, que o equívoco dos nossos liberais, tanto os do Império quantos os de sua época (1930), se relaciona diretamente a questão do ideal de Justiça, posto que sempre a ferirem. Contudo, diferentemente dos liberais de sua época, Vianna vê nos liberais do Império a preocupação com a questão prática, isto é, não se limitaram a apenas enunciar o ideal de justiça, antes formularam programas detalhados, ou seja, “um sistema de medidas por eles julgados capazes de dar realização a este ideal” (VIANNA, s/d, p. 91). E cita como exemplo os programas do Partido Progressista em 1864, do Partido Liberal em 1869, do Partido Radical em 1868 e do Partido Republicano em 1872. Para ele, estes demonstravam ter uma “noção concreta, objetiva, prática do que julgavam necessário para fazer” (VIANNA, s/d, p. 92). No seu dizer:
Os nossos modernos organizadores de programas não agem assim; não indicam as suas preferências; ficam nas generalidades. Mas generalidades nunca serviram para abandeirar homens conscientes, que querem marchar seguros para o seu alvo. Em torno delas poder-se-á congregar a massa dos indivíduos mais ou menos predispostos, por feitio mental, a estarem antes com a pessoa dos chefes do que com as ideias dos chefes. Os espíritos, porém, para os quais os programas políticos devem objetivar normas claras de ação, pontos concretos de reformas, não se contentam de generalidades e pedem coisas mais objetivas, mais práticas, antes de darem a sua adesão (Vianna, s/d, p. 92).
No Brasil, segundo o autor, a justiça não é acessível, segura, muito menos eficiente, daí a sua preocupação com a organização da justiça em primeiro lugar. Organização no sentido de garantir a liberdade civil, visto que, para ele, tal qual a organização judiciária existe saída da Constituição de 1891, ela possui falhas graves (sem poder de auto-organização, tirar o poder Judiciário da subordinação ao Poder Executivo que escolhe, nomeia, promove, remove e demite) que precisam de mudanças. Eis o grande problema, para Vianna, que se passa no país com o Poder Judiciário: o Supremo Tribunal Federal está, em sua formação, completamente subordinado a dois poderes essencialmente políticos, a saber, o Legislativo e o Executivo.
Ele diz:
Como o Legislativo é hoje uma entidade meramente expletiva, pode-se dizer que a organização do nosso mais alto tribunal está subordinada exclusivamente ao mais político de todos os poderes: o Executivo. Este fica com o arbítrio de mandar para lá, ou um magistrado às direitas, ou simplesmente um advogado do governo, ou um juiz ou um “camarada” – à vontade.
O que é preciso evitar é justamente isto, é justamente que a constituição da nossa suprema magistratura continue sujeita às possíveis influências do espírito de facção. O que se deve fazer é por no grande Tribunal o direito de organizar-se a si próprio e não só a si próprio, mas as outras judicaturas do país (Vianna, s/d, p. 94/95)
Ciente da implicação que essa auto-organização do Supremo poderia significar, Vianna é enfático:
Os demagogos dirão que isto importaria em instituir e legalizar, dentro da nossa democracia republicana, uma nova modalidade de oligarquia: – “a oligarquia do Supremo”. Todos estamos vendo que isto é apenas uma frase; mas, mesmo que correspondesse à realidade, ainda assim seria um bem. De todas as oligarquias possíveis em nosso país, a “oligarquia do Supremo” – a oligarquia da Toga – seria ainda a única realmente benéfica e liberal, a única, cuja opressão não humilharia – porque seria a opressão da Lei e não do arbítrio (Vianna, s/d, p. 95).
Para Vianna, no Brasil, não adianta os federalismos, municipalismos, sufrágio direto ou sufrágio universal, regalias de autonomia, não havendo o primado do Poder Judiciário. De nada valerão o sufrágio e o self-government “sem que este Poder tenha pelo Brasil toda a penetração, a segurança, a acessibilidade que o ponha a toda hora e a todo o momento ao alcance do jeca mais humilde e desamparado” (VIANNA, 1999, p. 477). Seu argumento é claro:
O ponto vital da democracia brasileira não está no sufrágio liberalizado a todo o mundo, repito; está na garantia efetiva do homem do povo-massa, campônio ou operário, contra o arbítrio dos que “estão de cima” — dos que detêm o poder, dos que “são governo”. Pouco importa, para a democracia no Brasil, sejam estas autoridades locais eleitas diretamente pelo povo-massa ou nomeadas por investidura carismática: se elas forem efetivamente contidas se impedidas do arbítrio — a democracia estará realizada. (Vianna, 1999, p. 479)
O que Vianna tem em mente é o modelo inglês de liberdade civil. Isso fica expresso ao citar William Pitt, quando em pronunciamento no parlamento inglês, afirmava que lá não havia
nenhum homem, por sua fortuna ou categoria, é tão alto que esteja acima do alcance das leis e nenhum é tão pobre ou obscuro que não desfrute da sua proteção. Nossas leis proporcionam igual segurança e garantia ao exaltado e ao humilde, ao rico e ao pobre (Vianna, 1999, p. 478).
A democracia inglesa, como a entende Vianna, se realizava pela garantia dos direitos individuais do homem e do cidadão, não pelo sufrágio universal – inexistente na época. No Brasil, pelo fato de existir um longo hábito de impunidade na sociedade, faz-se necessário essa organização da justiça em primeiro lugar, para poder eliminar esse costume de impunidade que assegura o arbítrio e corrompe a tudo. Feito isto, as liberdades civis estarão asseguradas. Mas ele adverte:
É certo, porém, que esta eliminação, a erradicação deste hábito de impunidade não poderá ser obtida, como presumem os nossos liberais fascinados pelo exemplo inglês mediante as chamadas “franquias autonômicas” — municipais ou estaduais. Estas poderão ser úteis para outros fins administrativos, menos significativos; não para este fim específico e superior. É o que a nossa História nos tem ensinado (Vianna, 1999, p. 479).
O que quer Oliveira Vianna, é colocar o Poder Judiciário fora da subordinação dos poderes Executivo e Legislativo, para ele, poderes sempre partidários e facciosos. Dessa forma, seria garantida a cidadania no Brasil, pois a justiça estaria não só acessível de modo a assegurar a estes a liberdade civil, como também estaria livre – a justiça – do arbítrio dos poderes políticos.
Fontes:
BUENO, Thiago Martins Barbosa. Estado e Sociedade no Pensamento Conservador Brasileiro: Alberto Torres e Oliveira Vianna. São Paulo: FAPESP, 2010.
VIANNA, Oliveira. O Idealismo da Constituição. Campanha Editora Nacional, 2ª Ed., 1939. (Biblioteca Pedagógica Brasileira).
VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999. (Coleção biblioteca básica brasileira)
VIANNA, Oliveira. Problema de Política Objetiva.